Poesia na Rua em Cacela Velha

Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Adolfo da Conceição Gago, Teresa Rita Lopes. Na povoação de Cacela Velha, no Algarve, facilmente se encontrava uma composição assinada por cada um destes autores.

Algures inscrita em tecidos fixados nas paredes de casinhas caiadas a azul e branco, nas vedações metálicas que demarcavam os espaços de circulação, ou em folhas de papel penduradas por molas em cordas de estender roupa, naquilo a que se baptizou de "estendais de poesia".

Nos passados dias 15 e 16 deste mês, Cacela Velha recebeu, pela segunda vez e de braços abertos, a poesia. A edição deste ano de "Poesia na Rua" levou novamente a cabo uma prazenteira homenagem a poemas e poetas que, de uma forma ou de outra, assinalam uma especial afinidade com esta pitoresca aldeia plantada à beira-mar.

Uns porque lá viveram, outros simplesmente porque nela encontraram uma imperdível fonte de inspiração para escrever. "É um lugar que parece exercer uma grande influência sobre os poetas que o conheceram", explica José Carlos Barros, poeta publicado e vice-presidente da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, a qual, em parceria com o Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela, encabeça a organização do evento.

Conta que Cacela Velha é "o lugar onde nasceu, no século X, o maior poeta árabe do seu tempo, Ibn Darraj al-Qastalli", que deu nome ao largo à volta do qual toda a festividade tem lugar. Do seu legado literário geminou a iniciativa que "começou sem grandes ambições".

Dentro do forte da aldeia, assomando do seu alto pátio, contempla-se a serenidade de uma vista panorâmica sobre a orla terminal da Ria Formosa - urzes e piteiras-da-Índia a revestir a encosta, traineiras ancoradas boiando sobre a laguna, bandas de areal mais ao fundo e mar como horizonte.

De olhar debruçado sobre o muro do lado este, observam-se os vestígios arquitectónicos da remota ocupação muçulmana naquele aglomerado, que um dia já foi cidade e ponto estratégico de defesa. No mesmo pátio, à sombra de uma antiga borracheira, decorrem as conversas e colóquios sobre os mais variados temas que compreende a poesia ligada ao Sotavento algarvio e a Andaluzia, esta última em virtude da colaboração da Fundação al-Idrisi Hispano Marroquina em projectos de investigação na área, facultando o acesso a fontes árabes, e na dinamização do evento.

Tiago Nené escreve, edita e traduz. Fundador do [Texto-Al], Grupo Literário do Algarve, o tavirense, que no ano passado publicou Polishop, foi conduzido ao evento na qualidade de recitador e orador.

Considera fundamental, nas palavras que tece sobre a iniciativa, "ter-se desenterrado a obra de Adolfo C. Gago, sem esquecer, num outro plano, aqueles que são os novos valores da poesia portuguesa, alguns do Algarve".

Fernando Esteves Pinto, que há muito também abraçou as palavras em verso, frisa a necessidade de não limitar à região Algarve a divulgação da poesia que nela se faz. Exemplifica-o com a Linguagem de Cálculo, associação cultural algarvia, detentora de várias chancelas editoriais, que ergueu junto com Tiago Nené e que desdobra a sua actividade em projectos de edição de livros, exposições, espectáculos de teatro, música e dança. "As apresentações de muitos dos livros que editamos são feitas noutras cidades portuguesas, como Lisboa e Porto", ilustra.

Por volta das 22h00 de sábado, teve início a sessão de recitais, que contou com a leitura em voz alta de dezassete declamadores. Brindou o lote de espectadores de uma forma pouco prosaica: a cada poema lido seguem segundos de música pela Filarmónica de V. R. de Santo António e o estouro de um foguete.

Mas nem só de poesia, apresentações de livros, recitais e palestras se compôs a festa. Para além de animações e actividades dirigidas aos mais novos, pela manhã, o público presente pôde ainda assistir à projecção de uma curta-metragem, Fragmentação, realizada pelo jovem autor algarvio Nuno Fernandes, de tarde, e a duas actuações musicais, pelos Guta Naki e Noiserv, à noite.

Não faltaram, a par de tudo isto, as habituais bancas de comes e bebes e outras, que, dispersas pelo largo, apresentaram doçaria e licores regionais, vinhos, cestaria, olaria, cadernos e blocos artesanais e, claro está, livros, sobretudo na forma de antologias e selecções de poesia. Já na casa dos 80, Maria Antónia Neves veio do concelho vizinho de Tavira para dar a conhecer ao freguês o seu artesanato, praticado como um dos seus "vícios".

Sob a luz do entardecer e sentada atrás da mesa onde dispõe tapetes de trapos, abanicos feitos com tiras de pacotes de leite, cestos de sacos de plástico e pegas de cozinha "de toda a maneira e feitio", assume estar a gostar do evento e do "movimento que traz à aldeia", cuja densidade populacional regista os valores baixos que se esperam de uma zona, como tantas outras, marcada pelo êxodo e pela desertificação.

artigo publicado no Diário de Notícias, por Duarte Baltazar

Pages

Popular Posts