MANUEL MADEIRA POR MARIA DO SAMEIRO BARROSO





À DESCOBERTA DAS CAUSAS NO SORTILÉGIO DOS EFEITOS

Manuel Madeira
Poesia



NA PAISAGEM POÉTICA, O UNIVERSO DO SER

            Neste trabalho poético, o mais recente de Manuel Madeira, autor que já nos habituou a poemas de fôlego, amplia a sua relação ôntica, percorrendo as várias vertentes da dialéctica tempo-espacial do eu poético, na sua articulação com o universo.
No primeiro ciclo de poemas, constituídos por VI partes, intitulado Universo, o poeta posiciona-se exactamente no seu centro: «Estamos neste momento no Centro do Universo,/por mais que me afaste não me aparto do centro/ porque estou convosco pisando o mesmo chão/ que viaja connosco, que viajamos com ele.» (I, p. 9).
O universo é desde logo enunciado como um centro de afectos, no qual o ser se integra, na sua dimensão cósmica. No segundo poema, a palavra é introduzida como elemento estabilizador, o único, através do que é possível estabelecer pontos de referência, ainda que frágeis, pois pressentimos aqui a corrosão do tempo e dos afectos, projectados na inevitabilidade da entropia do cosmo: «Só as palavras sonham ser estáveis e intactas/como estacas cravadas nas bermas devassadas,/mas nem elas resistem à corrosão entrópica/nem nós que as usamos somos impolutos.»(II, p. 10).
A sua procura é intemporal, inscreve-se nas origens, remonta ao atomismo de Demócrito: «Falemos da forma e da essência das coisas,/procuremos a origem mais remota do ser/a causa das causas casuais das coisas/o nada original princípio e fim de tudo./Os gregos já tinham sonhado com o sonho,/Demócrito sonhou (...)». (III, p. 11).
A «matéria dinâmica» consubstancia a energia endógena que conglomera em si todos os sentidos, incorporando o orgânico e o inorgânico: «Porque a matéria sonha e pulsa desde o verme à estrela»: (IV, p. 12).
Na concepção de Friedrich Schiller (1759-1805), que possuía sólida formação na área das ciências, nomeadamente, na Medicina, o verdadeiro Poeta deveria incorporar em si todos os avanços científicos e conquistas do seu tempo[1].
Há, de resto, ecos da Ode à Alegria (An die Freude) do jovem Friedrich Schiller: «Wollust ward dem Wurm gegeben,/Und der Cherub steht vor Gott».(Volúpia foi dada ao verme,/E o querubim ‘stá ante Deus.[2]).
No séc. XVIII, está patente a concepção de Leibniz (1646-1716), segundo a qual: «os instintos não devem ser compreendidos como afectos, isto é, como “confusae repraesentationes[3].
É no âmbito desta consciência (do final do século XVIII), ampliada e transposta para o século XXI que Manuel Madeira abre sobre si mesmo as portas do seu universo poético, que se constitui como «Substância original de toda a eternidade» (V, p. 13).
Para a sua interrogação sobre o real, convoca Platão: «Platão sabia que o real é uma sombra/mas a sombra não é ipso facto o real:» (VI, p. 14).
            Partindo do seu «Início Instável» (título do poema da p. 16), fazendo o seu caminho através da sua «Oscilação cega» (título do poema da p. 17), a natureza, vivificada pela «fonte das palavras» inaugura a relação do poeta com a sua «essência intrínseca» (p. 20). No poema da página seguinte, o diálogo do poeta com natureza assume formas concretas: «Hoje tive a visita do melro preto com duas penas brancas» (p. 19) que se articulam com a sua «Autobiografia» (p. 20): «Trago sedimentos de palavras que são grãos/de areia de um deserto inesgotável» (p. 21).
Nesta paisagem que Manuel Madeira nos vai confiando, a luz: «É uma sombra fóssil com raízes aéreas» (poema «Luz para iluminar um fóssil», p. 22).
Tal como para Hans-Georg Gadamer(1900-2002): «Na verdade, o horizonte do presente está num processo de constante formação»[4]. Este processo não se forma à margem do passado: «Parte dessa prova é o encontro com o passado e a compreensão da tradição da qual nós mesmos procedemos[5].
É neste devir poético que cabem e se abrem as «Estratégias do vento» (pp. 23- 27). Neste ciclo, o vento, sacudindo as ramagens da memória, convocando «o silêncio de um Nocturno de Chopin» ou, curiosamente o, já veladamente aludido «hino à alegria da nona sinfonia de Beethoven» e a conclusão de que «só os genes são responsáveis/porque são imortais como as partículas que os enformam.» (p. 25).
No nosso tempo, é nos genes, no ADN, na ciência, em resumo, que o homem se revê, na sua necessidade arcaica de Deus e da Eternidade. : «A morte dos deuses é um sinal do tempo que nos viu nascer», afirmara nas Cartas Poéticas[6] que trocara com António Ramos Rosa. O ser é uma parte do Todo, corresponde a uma ínfimo resíduo cósmico, mas apenas nele pode projectar a sua certeza ou ilusão de Eternidade, uma vez que: «A morte dos deuses é um sinal do tempo que nos viu nascer»
O vento é também um elemento estético, por excelência, que actua como dilecto agente transmutador da matéria e dos afectos: «O vento é neste caso um violino/percutido pelo arco de um poeta/que transforma a dor sofrida em alegria.» (IV, p. 27), onde «a música do silêncio» persiste «numa canção de Mahler» (p. 28).
E a paisagem poética continua a desdobrar-se, nas meditações dos seus «Trajectos» (pp. 30-35), de onde o poeta emerge «Perdido às escuras entre fragrâncias claras» (p. 36). O uso recorrente de antinomias e ao oxímoron reforça a dialéctica desta poética. No verso seguinte: «é como estar soterrado na leveza das nuvens». As coisas e as vivências são transformadas: «A distância/ dilui-se em sensação. As palavras substituem/os objectos e os seres agora transformados em recordação/que acorda os momentos esculpidos/no espaço tempo que os levou consigo.» (p. 37).
O tempo, que, para Schleiermacher (1768-1834): « já não é mais, primariamente, um abismo a ser transposto porque divide e distancia, mas é, na verdade, o fundamento que sustenta o acontecer, onde a actualidade finca as suas raízes[7], rodopiando, no seu imponderável eixo, é: «seta disparada à revelia dos sentidos» (p. 40), ou «(...) a ânsia indizível de o procurar» (Poema «Em memória de Marcel Proust/Todo o presente já passado» (p. 44), projectando-se prospectiva e retrospectivamente: «tacteando o vazio», «a ausência», «porque tudo é passado à velocidade da luz».
A natureza fornece-lhe indícios seguros: «Vejo através da janela a trajectória das aves» (p. 42), enquanto o real lhe parece escapar: «Quanto mais falamos do Real/mais ele nos foge por entre os dedos vagos» (p.43).
Pontuando esta poesia de pendor reflexivo filosófico, a música: «Embalado pela música», o tempo: «o tempo sem sentido que tem o sentido/ sentido por mim» e as palavras: «Surpreendo as palavras no seu leito de cal» (p. 47), articulam uma tríade na qual o ser poético se vincula ao real e ao onírico. Pela palavra que, conscientemente desperta: «Desperto-as para que me despertem/do sono vegetal em que sonho com elas»(p. 47), aspergindo a sua seiva para dentro de si, inscreve, na sua própria luz, a luz do universo e, em meditações metapoéticas: «A poesia desliza entre o silêncio e a palavra (Poema «Entre silêncio e a Palavra», p. 48).
Entre os cometas, transformados em pintura, «Sobre um quadro de Kandinsky»(p. 51), «O vento que sacode os pensamentos» (p. 52) e retalhos do quotidiano, no qual o homem é o inexorável predador: «Chegaram os caçadores e as perdizes sabem» (Poema «Caça», p. 53), persiste o núcleo inconsciente presidindo, com a sua matéria de enigmas: «Todos os dias assisto e participo talvez inconsciente/na luta silenciosa (...)» (Poema «Enigmas», p. 54).
A relação poema/verdade é assumida por Manuel Madeira: «O poema é a verdade É nela que se move/respira e canta mesmo que a respiração seja ofegante/e o canto doa até fazer sangrar» (p. 59).
Goethe (1749-1832) enunciara uma poética ao serviço da verdade, no livro «Dichtung und Wahrheit» (Poesia e Verdade), tendo referido, na carta a Zelter, as suas obras como: «Es sind lauter Resultate meines Lebens, und die erzählten einzelnen Fakta dienen bloß, um eine höhere Wahrheit, zu bestätigen.» (São factos puros da minha vida e os pormenores dos factos narrados servem apenas para constatar uma verdade mais elevada)[8].
Aos «Fakta» de Goethe, vêm-se sobrepor as «Erlebnisse» (vivências), palavra que só passou a ser utilizada nos anos 70 do séc. XIX. Tal como esclarece Hans-Georg Gadamer: «No século XVIII ela absolutamente ainda não existe, mas também Schiller e Goethe não a conhecem. A partir daí, a palavra “vivenciar” passa a carregar o tom da imediaticidade com que se abrange algo real»[9].
Para este filósofo: «A corrente vivencial possui o carácter de uma consciência universal do horizonte, do qual só se dão realmente momentos individuais, como vivências.»[10].
É a essa verdade, a essa totalidade, que Manuel Madeira se consagrara e já expressara nas Cartas Poéticas que trocara com António Ramos Rosa, seu amigo de juventude: «Suspendo um pouco a mão sobre o papel/para deixar fluir por todo o corpo o pensamento/porque sou eu inteiro que escrevo e penso»[11].
            Nessa totalidade, Manuel Madeira mergulhara já a sua aspiração cósmica: «Aspiramos à implantação do ser/como quem implanta uma alfarrobeira ou um hibisco»[12].
            Uma alfarrobeira, planta tipicamente algarvia, terra natal dos dois poetas, ou o hibisco, exuberante flor meridional são um elo presente e acessível, nesse país poético.
            «Às vezes é tão pouco o que nos torna o passo leve», dissera, quase ciciando, António Ramos Rosa[13].
A infância: «O aroma quente dos morangos» (p. 60), a grande explosão cósmica: «Tenha ou não havido a Grande Explosão» (p. 62), ou, de novo, cenários de um quotidiano mais próximo: (Poema «Era o Verão»), «Chegava montado numa pileca esconsa»(p. 63), são pontos de partida diversos que continuam a alternar.
Nesta torrente poética em que «Ser livre é estar disponível e vazio» (Título do poema da p. 62), ou: «Em memória de Miguel Torga/no centenário do seu nascimento (título do poema da p. 65), Manuel Madeira sabe também reconhecer a aridez da vida: «mesmo aqui a Poesia te visitava», ou: «Nem sempre cantaste a alegria de viver/embora esse desejo permaneça fulgurante».
«É artificiosa e matreira esta matéria mais ínfima», diz-nos na p. 67, «Vemos e sentimos o mundo à nossa imagem» (p. 69).
Deste universo: «Talvez o círculo seja a figura dominante aproximada/deste universo aberto e sincopado que somos» (p. 73), tudo é imprevisível: (Título do poema «Anatomia do Amor Imprevisível», p. 74), porque «tudo o que existe poderia ser diferente/senão na essência ao menos na aparência».
Mergulhando na sua própria génese: «Nada existia antes que não fosse tudo» (p. 75) e, nesta paisagem, a um tempo, cósmica, quotidiana, o poeta escava bem fundo, o mundo, nas suas margens abertas, porque, fulminando em si a luz, define o poema, afinal como:
«um universo de letras»
(Poema «Tempo do poema ou Poema do tempo», p. 76).

Maria do Sameiro Barroso


[1] [Josef Käufer], Versuch einer Einführung, in Friedrich Schiller, Medizinische Schriften, Hoffmann – La Roche, Munique, Anlaßdes 200. Geburstag des Dichters, 10 November 1959, p. 18.
[2] Friedrich Schiller, poema À Alegria, in Paulo Quintela, Obras Completas, IV (Org. António Sousa Ribeiro), Traduções III, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1999, p. 344.
[3] Leibniz, apud Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica (original: Wahrheit und Methode, Tübingen, 1986), trad. de Flávio Paulo Meurer, 3.ª ed., Vozes, Petrópolis, 1999, Primeira Parte, 1.1.3, β [p. 34] (74), nota 74.
[4] Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, Segunda Parte, 2.1.4, [p. 311] (457).
[5] Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, Segunda Parte, 2.1.4, pg. 311] (457).
[6] Sexta carta a A.R.R., in António Ramos Rosa e Manuel Madeira, Cartas Poéticas in Idem, Trigésima primeira carta a A. R. R., Editora labirinto, Fafe, 2007, p. 23.
[7] Schleiermacher, apud Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, Segunda Parte, 2.1.3, [pg. 302] (445).
[8] Johann Wolfgang Goethe, in | Brief| an Zelter, 15,2,1830, apud Hrsg. Richard Dobel, Das Lexicon der Goethe-Zitate, Patmos Verlag, , Albatros Verlag, Düsseldorf, 2002, p. 320.
[9] Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método. Primeira Parte, 1.2.2.β [pg. 66] (117).
[10] Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, Segunda Parte, 1.3.1, [p. 250] (373).
[11] António Ramos Rosa e Manuel Madeira, Cartas Poéticas, in Trigésima primeira carta a A. R., p. 77.
[12] António Ramos Rosa e Manuel Madeira, Cartas Poéticas, in Sexagésima terceira carta a A.R.R., p. 144.
[13] António Ramos Rosa e Manuel Madeira, Cartas Poéticas, in Quinta carta a Manuel Madeira, p. 20.

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